terça-feira, agosto 24

(A)gostos

Ficávamos sempre ali, à sombra de um chorão. Deitados no chão, de cabelos desgrenhados , com as mãos afastadas do corpo, as pernas ternurentas. Deitados, apenas. A ver os nossos corações suspensos no ar, com o céu e o sol como fundo. Tu e eu, dias inteiros. Contávamos todos os episódios dos últimos anos. Íamos conversando, gesticulando língua e dentes à medida que a memória puxava por mais. E ríamos. Tínhamos 15 anos e parecíamos ter 5. E acreditávamos tanto um no outro... Perdemos o rasto ao que sentíamos, foi isso? Por consequência das linhas do tempo, aquilo que nos unia é hoje um fio fininho, como um fio de teia de aranha. Que suporta tudo, dirás. Porém frágil, digo-te eu. Depois, ao final da tarde, pegávamos nos nossos corações e íamos apanhar amoras e comê-las quentes, directamente das silvas. Acabávamos a comparar línguas, a ver quem tinha a língua mais rôxa, ou preta. Depois, para ficarmos iguais, como dois esfinges sem alma, beijávamo-nos e perdíamos a noção dos prazos impostos e quando nos largávamos o sol já dobrava o horizonte e apetecia-nos sempre mais beijos. Que eram doces, como amoras em Agosto. Que voltes. Só quero que voltes. Que me abraces e digas que foi tudo um monstro já morto pelas estações do ano, um momento de fragilidade mais forte do que nós. Que me sorrias e me seques as lágrimas que hão-de chegar-me aos olhos, mal olhe para ti. E que me envolvas nos teus braços.
Depois voltávamos para casa de sorrisos rasgados. Sentia o teu pescoço, batia com as pontas dos meus dedos na tua clavícula e trincava-te o lábio.
No fim, davas-me um beijo na testa e dizias "Até logo, meu esfinge". E eu entrava em casa cada vez mais certa de que eras tu. De que a metade que me faltava tinha o teu nome e o teu cheiro e de que os teus beijos eram tudo o que eu precisava para ser feliz.

segunda-feira, agosto 16

Chocolates

Lembro-me do dia solarengo em que nos encontramos para beber um café, pensava eu, sabia lá que ias beber era um grilhão colado à minha alma de cristal. E eu nunca gostei de homens sabichões. Mas embalaste-me na tua voz farronca, brincavas com palavras e lançavas-me armadilhas num tom rouco e quente, sorrias-me com desdém e os teus olhos acendiam estrelas brilhantes. Se não fosse tão segura de mim, poderia dizer que me tinhas hipnotizado nesse dia. Fiquei tonta, como uma adolescente. Tinha um sorriso embasbacado na cara. O meu pensamento limitava-se às figuras ridículas, ou não, que poderia estar a fazer e mantinha-me calada. Envergonhava-me a tua segurança, acanhava-me os teus galanteios. Impressionante como o teu cavalheirismo e a tua acomodação no desconhecido me deixava frágil. Passo ante passo, conquistaste-me quando subitamente abriste um saco em que trazias uma caixa de chocolates. Era negra como a minha alma, banalmente em forma de coração, mas subliminarmente brilhante. Um pedaço de céu nas tuas mãos que aumentou a minha fome de ti. Recordo-me que falaste. No entanto, não ouvi sequer uma palavra. Aquelas frases eram como excertos de canções demasiado românticas que sinceramente, me aqueceram o coração. Eram como o sopro do vento, numa alba calma e paradisíaca.
Naquele momento, só o teu rosto e os teus braços fortes estavam presentes na minha íris. Aos meus olhos eras bonito, miraculosamente bonito, mesmo não o sendo. Mas perdi-me na tua graça, nas tuas armadilhas.
Hoje consigo ver que fui como um chocolate. Abriste levemente as minhas defesas com a gentileza com que tiravas cada pedaço e o desembrulhavas para depois mo dares na boca. Comeste pedaço após pedaço e depois fechaste a caixa, deixando-me tão vazia que só poderia encher esse vácuo com memórias tuas.

quarta-feira, agosto 11

Névoa

Apetecia-me um beijo. Apetecia-me olhar-te nos olhos que se riem e esperneiam sempre tanto. Apetecia-me fixar-te os olhos, aproximar-me de ti devagarinho, sentir-te aproximar de mim também. E beijar-te. Devagar. Suavemente. Os meus lábios perdidos nos teus. As tuas mãos pelo meu pescoço, pelo meu cabelo, por mim. Encorpado. Um beijo encorpado. Com principio, meio e fim. Apetecia-me perder a noção do tempo no compasso dos teus beijos. Sentir-te a boca sedenta, urgente. Sentir-te a língua segura, sincopada. Apetecia-me desmaterializar-me aqui nos teus beijos. Num beijo tu. Nós. O primeiro. De tantos. Num tempo de beijos frescos e sorrisos e palavras ditas em tom de sussurro. Num tempo de sintonias e de sílabas à deriva. Num tempo sem murmurios, sem lapsos, sem medos, sem fúrias. Num tempo nosso. A começar. E depois sentir-te a língua que procura a minha e a abraça. Sentir-te a língua que me arrefece os lábios. Sentir-te a respiração cortada, suspensa, e depois largada como num suspiro. Sentir-te morder-me o lábio e dares-me mais um beijo quente. Um beijo urgente, com todo o tempo que falta. Com todo o tempo que temos para beijos, palavras, sorrisos e silêncios. Para o que é e para o que pode ser. Apetecia-me o toque sublime das portas entreabertas, porém quietas. Das portas que abrimos devagar para não acordar fantasmas de que não precisamos aqui. Apetecia-me dizer que te quero os beijos, as palavras, os sorrisos e os silêncios. Que te quero inteiro, com o passado que trazes, com as feridas saradas e as outras ainda por lamber. Que te quero por seres tu, com tudo o que te constrói. E apetecia-me beijar-te devagar. Sentir-me perder-me na amplitude dos teus beijos. Sentir-me encontrar tudo o que trazes escondido e me faz sorrir. Hoje era um dia bom para nos silenciarmos com beijos no entremeio dos lábios sorridentes. Para nos encantarmos e deixarmos que o desconhecido aconteça...