sábado, janeiro 2

Esfinges como nós


Sou diferente, quando não estou contigo: argumentativa, influente, persuasiva, convincente. Sou a que arrasta multidões, a que quando fala os outros baixam as orelhas, a que tem histórias para contar, teses para defender e pontos de vista para demonstrar, catedrática e exegética. Mas olho-te a boca e fico assim, meio gaga e cacofónica, trapalhona e concordante, onomatopeica e monossilábica, tímida e desconchavada. Acometida de dislexia verbal, a querer saborear os teus lábios e tomar o teu corpo (meu) como se nisso residisse toda a minha erudição. Sou palavras que se trocam, raciocínios descabidos, piadas sem graça nenhuma e mãos sem poiso certo que me vão sobrando por debaixo da mesa. À vista dos teus olhos, que se cerram devagar enquanto me engolem inteira, vão-se num ápice: a extremosa educação, os pudores e o civismo, a contenção e a compostura. E eu faço mais do que entendo e farejo mais do que penso. Porque há qualquer coisa em ti que quase me priva de humanidade, que faz de mim um bicho, irracional, até. E isto porque os teus olhos e a tua boca, porque ainda e sempre a tua boca, eloquente, concisa e segura. Como se isso importasse alguma coisa! A tua boca, em nome da qual apetece erguer altares, queimar incensos, acender velas, fundar uma religião, preces diárias, promessas. Sou diferente, quando não estou contigo. Sou razão pura e não esta fé pagã; Sou o que sei ser e não o que de facto sou.
Por Mariana Louro, adaptado.