domingo, julho 25

Mágoa

Eu podia dizer que dos teus dedos saem melodias. E que da tua língua sai o açúcar que me embala nesta inocente insanidade que nos assola a alma. E que das tuas mãos grossas nascem frases e frases que cortam como fogo e que te peço que pares, com receio do que possa vir a seguir. Mas tu não estás. És apenas um esboço esbatido e ausente. Que se assume consoante as posições da lua. Que, como os felídeos, se espreguiça em atitude de pecado mortal, desafio perante o mundo. Que, como as cobras, se acomoda enrolando penumbras e envenena, mortalmente, apenas por prazer.
Eu podia acomodar-me nesta alienação mental. Podia brincar com os teus caprichos e levar-te ao cume da leviandade. Que, tal e qual, a feminidade das mulheres, adestra os filhos em sinal de afecto. Podia ficar à divina, e - não vás tu pensar que era incapaz de o fazer - responsabilizar-te por todos os abismos que me obrigaste a saltar . Mas não arrisco. Fico meio à deriva neste não-saber-o-que-fazer e dou por mim a vaguear nos meus pensamentos de mulher-esfinge, a duvidar dessa divindade inopurtuna.
Eu podia acusar-te das maiores temeridades. Podia perpetuar o teu nome em todos os livros e cravá-lo no peito como sinal de afeição. E podia tentar ficar do lado branco da vida. Podia tornar-me em barco vazio e procurar o teu rio. Podia sugar essa magistralidade que tanto veneram e largar-te. Podia amar-te. Mas tu não estás. Não determinas. Todo tu és uma coisa que me esmaga. Um tremor de terra num passo imortal. Uma palavra dita fora do lugar. Todo tu és consequência. E não saber o que vem a seguir...

Então, em silêncio, dou asas ao complicómetro enquanto te consolas ao sabor dessa tua vida medíocre e faço pé-de-alferes ao cacau que mantenho na boca.

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