quarta-feira, maio 19

O avesso do inverso

Os calafrios percorrem todo o meu corpo quando ouço o toque das tuas mãos sobre o gatilho. É uma lembrança tão gélida, capaz de trazer o poder de escuta da tua pele sobre a arma. São as lembranças apodrecidas pelo tempo que me fazem temer-te. É a prova (não) viva de que o passado influencia e molda a nossa vida. De uma cor enegrecida pelos nossos defeitos, a arma dançava nos teus dedos num ritmo só teu. Depois de tantos segredos revelados pensava que te conhecia os movimentos mas bastava visualizar a forma de entrelaçar os dedos, para me aperceber do quanto estava enganada. O toque das tuas mãos carregadas de calos e unhas mastigadas sobre a minha possível causa de morte brincava com uma dávida de deuses macabros. O teu sorriso malicioso desenhava-se serenamente, bloqueando-me o olhar. Passava a mão sobre o cabelo e tapava o rosto para não teres acesso aos meus sentimentos. A água salgada dos teus olhos escorria-te por entre o nariz. Quente, amarga como veneno. E, de repente, a dança frenética dos teus dedos parou:
- Porque é que não me queres?
- Não te escolhi.
- Simplesmente assim? Qual é o motivo?
- Não se pode escolher quem se ama. - As palavras infiltraram-se lentamente no ambiente e espalharam-se pelo meu corpo. Por mais absurdo ou soberbo que pareça, ainda consegui ouvi-las uma segunda vez. O meu olhar vazio ainda pediu compaixão. Só me lembro de ver a arma apontada para o meu peito e ouvir o teu dedo forte no gatilho, pressionando-o. Quando coloquei a mão direita sobre a ferida mortal, adormeci.

Por David Pimenta, (muito) adaptado.

1 comentário:

  1. arrisquei.tentei.perdi21 de maio de 2010 às 15:55

    '' Deixo livre as coisas que amo, se elas voltarem para mim foi porque as conquistei, se nao voltarem foi porque nunca as tive. '' .

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arrisca(-te)